Porque não avançam os arquitetos em Portugal para edifícios Passive House e NZEB? O que acontecerá a quem não fizer este movimento? E como vai a Ordem do Arquitetos trabalhar neste sentido? Estas e muitas mais respostas nesta entrevista a Marlene Roque, arquiteta, professora convidada no ISCTE e vogal no Conselho Diretivo Nacional da Ordem dos Arquitetos.
Margarida Gamboa (MG) – Sabemos que o edificado em Portugal tem muitos problemas por resolver. Em que medida achas que o padrão Passive House pode resolver estes problemas do edificado em Portugal?
Marlene Roque (MR) – Efetivamente, temos um percurso ainda longo por fazer em Portugal. Bem, eu diria por toda a Europa, mas estamos sempre a fazê-lo. Estamos sempre a tentar inovar e a adaptar-nos às novas tecnologias, mas também às novas necessidades dos utilizadores dos edifícios.
Mas existem questões e utilizações que são básicas, e eu diria que existem desde sempre, neste domínio do que é arquitetura, nomeadamente o conforto. Desde que se começou a criar a noção de abrigo para pessoas, o que se procurava era ter conforto dentro destes espaços que nós habitamos.
Dito isto, o que é que acontece hoje em dia? Nós temos a tecnologia do nosso lado e parece-me uma falta de sentido não usarmos a tecnologia disponível hoje. Então, a questão coloca-se ao contrário: com este conhecimento e este recurso tecnológico que temos hoje, por que é que nós, arquitetos, não desenhamos os edifícios de uma forma mais passiva, sem sistemas complexos, e alcançamos este conforto que se pretende, este controlo quer da humidade relativa no ar quer da temperatura do ar, de maneira a nos sentirmos mais confortáveis dentro destes edifícios? Neste sentido, os arquitetos têm um percurso muito grande ainda a fazer, que é garantir esta otimização do sistema mais simples, mais passivo, mais natural de o fazer.
MG – Porque é que achas que isso acontece?
MR – Eu penso que nós temos uma cultura de projeto em Portugal que deriva muito da escola das Beaux-Arts. E, portanto, academicamente, esta geração de arquitetos, a minha, a anterior a mim, e possivelmente aquela que eu também estou a ajudar a formar no ISCTE, ainda é muito formatada para a arquitetura na perspetiva da estética e do conceito do objeto.
Falta coser a esta noção a componente técnica, mas agregada ao conforto, à sustentabilidade, à economia, e isso depende muito da Academia, onde os arquitetos se formam. Quero com isto dizer que há escolas neste país, o ISCTE é um dos exemplos onde eu dou aulas e onde leciono precisamente a cadeira da física das construções, onde nós vemos esta performance física dos materiais e do todo do sistema: como é que uma cobertura, um pavimento, um vão envidraçado, uma parede se comporta à transmissão de calor, à luz, à radiação solar, à transmissão da energia sonora. Isto são características físicas e que derivam das escolhas dos materiais e de como se desenham os sistemas, como é que se desenha uma parede que não é 2 linhas obviamente e que não são 2 linhas sem sentido. As coisas têm de fazer sentido e depois é preciso também que, além de o arquiteto ter este know-how, conhecer também os materiais que existem no mercado.
Ora, por si só, estas duas questões já exigem do arquiteto um constante conhecimento, o que mercado lança e também um conhecimento de física das construções que, por defeito, o arquiteto da Beaux-Arts acha que está associado ao trabalho de um engenheiro e não do arquiteto. É um princípio errado.
É um princípio que combatido na academia fica q.b. resolvido e depois o arquiteto também tem de ter por si uma apetência, uma vontade de explorar estas dimensões da arquitetura que não só a estética e que, na minha opinião, os arquitetos em Portugal não têm esta apetência, não têm este gosto e não têm esta vontade de ir com mais profundidade aos sistemas, aos materiais, ao conhecimento.
Isto é uma crítica, mas é o que eu interpreto da realidade dos arquitetos com quem trabalho.
MG – O facto do padrão Passive House ser um padrão quantitativo, que para ser alcançável tem de ser medido, onde não há subjetividade , e tudo aquilo que estás a dizer, desta ligação tão próxima aquilo que é a física, que é a matemática, é um impedimento, porque contraria aquela que é a zona de conforto do Arquiteto.
MR – Tal e qual. A zona de conforto do arquiteto, nesta lógica que estamos a falar, é uma lógica do desenho, o depurar pelo desenho, o procurar a estética pela cor, pela forma, pelo desenho, e está tudo certo. Tem é que se pensar que associado a esta dimensão tem de haver a dimensão do cálculo, da medição, da estimação. Estimar a performance e depois quantificar, evidentemente, e até um nível mais profundo por um engenheiro. Mas não há como o arquiteto alcançar uma casa passiva sem estimar, sem prever e sem quantificar.
Estamos a falar sempre de conforto, conforto associado a uma performance térmica e quanta energia não se perde, quanta se mantém, qual o caudal de ar a renovar no interior do edifício. Mas também, para não querer assustar, estamos a falar de um nível de medição e de estimação muito básico, que qualquer formando neste país, licenciado, mestre, domina. Não estamos a falar de uma matemática profundamente complexa, atenção.
MG – Sim e aqui há programas que vão ajudar a fazer todos esses cálculos…
MR – E os programas fazem todo o cálculo. Nós inserimos parâmetros, inserimos, áreas, orientações solares e dados fornecidos por bibliografia imensamente disponível e depois a folha de cálculo determina essas trocas de energia.
MG – E achas que hoje em dia é o cliente também que está a pressionar o arquiteto e, por sua vez, o arquiteto também pressiona a área de formação para ter estas componentes da eficiência e do conforto em cima da mesa?
MR – Sim, há uma evolução da lógica dos passos. Seria de salutar que fosse ao contrário, que fosse a vontade de especialização do arquiteto, a vontade de explorar, de conhecer, de evoluir. Não é uma vontade de uma formação paulatina para poder crescer. Na verdade, esta formação acontece de forma reativa.
O que eu vejo são os clientes, os nacionais e sobretudo os internacionais, que apostam no nosso mercado em Portugal e que vêm com estes conceitos mais do que estabelecidos no centro e no Norte da Europa, e que vendo um país com condições climáticas tão boas, questionam-se da falta de qualidade construtiva no nosso país: edifícios com muitas patologias, desconforto e a necessidade de usar sistemas de climatização. Isto quando eles associam este país quase que ao Paraíso. E digo isto por reação dos meus clientes, que se questionam como é que este país tem edifícios com tanto desconforto, com tão má qualidade construtiva. Parece-lhes a eles que há aqui um desfasamento e eu explico, e também dou aqui o meu entendimento da situação, que é porque nós ainda não evoluímos academicamente e profissionalmente para este entendimento que parece tão claro e, portanto, como não o fizemos ainda, ainda não estamos a projetar desta forma, mas lá chegaremos.
MG – Falando da parte académica, em outubro estiveste na conferência Passivhaus Portugal, num painel onde esteve a professora Ana Rute Costa, que é professora responsável do curso de arquitetura na Universidade de Lancaster. Enquadrando aqui o que estamos a falar, no curso em Lancaster os alunos têm enquadrado no currículo o padrão Passive House, do ponto de vista teórico e prático. Nas duas vertentes, achas que faz sentido seguir esta mesma linha em Portugal?
MR – Eu dou um toque meu nas minhas cadeiras de física das construções. Na verdade, não é parte integrante do currículo seguir nenhum sistema de cálculo nacional. Quer no cálculo da eficiência energética, eficiência hídrica, ter parâmetros a balizar e estimar a sustentabilidade dos edifícios, não usamos ferramentas em particular. Falamos de uma forma muito genérica. Eu dou a conhecer todas estas ferramentas e sistemas aos alunos, mas a verdade é que nós não temos no nosso currículo um sistema fechado, nem sequer o sistema de cálculo de determinação de conforto pelo sistema nacional obrigatório.
Mas ensinamos a calcular de uma maneira genérica, ou seja, os edifícios têm que ser o mais passivos possível, têm que manter as condições de conforto de aproximadamente 21 °C, de 50% de humidade relativa no interior destes edifícios. Isso fazemo-lo, mas mais uma vez indicamos sempre que depois, quando iniciarem a atividade profissional poderão fazer estes cálculos de uma maneira mais detalhada, inclusive calcular um projeto de conforto térmico, seguindo a lei nacional ou ainda por outras ferramentas que levam sistema passivo mais a fundo.
MG – Ou seja, vai um bocadinho na linha de que cada professor depois coloca nas cadeiras que dá e não numa perspetiva curricular mais integrada?
MR – Sim, eu diria que sim.
MG – Mas para ti faria sentido que pudesse haver diretrizes nesse sentido, para o aluno conseguir terminar o curso a saber fazer o cálculo, a saber introduzir dados para que, mesmo que ele não vá projetar Passive House, ele pelo menos tenha noção ao ir projetar quão distante ou não está destes parâmetros?
MR – Sim, faz sentido. Eu leciono as cadeiras de física das construções do 1º ao 3º ano, mas os alunos que têm mestrado integrado e que no 3º, 4º e 5º anos, seguem esta via da especialização, nomeadamente a sustentabilidade e os edifícios NZEB, acabam por fazê-lo, e em função do seu orientador optar por uma ferramenta de cálculo. Certamente não terminam um mestrado só com valores teóricos, mas sim consubstanciado num cálculo.
Há uma máxima que diz que o que não se mede não se gere. Se os alunos não aprenderem a calcular e a medir, não vão poder afirmar com convicção se o seu edifício é ou não passivo, se o seu edifício é ou não NZEB, e isto é uma falácia. E grande parte dos arquitetos usam como uma bandeira mas eu diria que se calhar metade não calculam, e nunca calcularam, e portanto não estão a dizer com rigor que o edifício é passivo ou que tem poucas necessidades de energia.
O que aqui deveria mudar era que todos os arquitetos deveriam obrigatoriamente, no seu currículo, aprender a usar uma ferramenta de cálculo para poderem afirmar que o seu edifício é um edifício de acordo com os standards e diretivas europeias, que efetivamente é de zero e passivo.
MG – Falando na Ordem dos Arquitetos, que é outro passo aqui mais à frente, nesta continuidade que tu até disseste ser indispensável para um arquiteto hoje em dia estar a par daquilo que vai sendo a evolução dos materiais e da própria construção, como é que a Ordem dos Arquitetos já integra estes conceitos na sua formação, se é que o faz, e o que é que se perspetiva que vá acontecer? Quais são os planos do que pode acontecer?
MR – Quando recebi o convite para ficar com estas pastas no CDN (Conselho Diretivo Nacional) foi com base na minha experiência enquanto formadora, que fui durante 9 anos na Ordem dos Arquitetos, mas também com esta minha área de especialização. A ideia é trazer estas matérias com mais profundidade para dentro do Plano Único de Formação, mas também nas áreas da formação de especialização. Nas áreas de especialização nós estamos a levar com profundidade o tema da sustentabilidade, onde integramos a eficiência energética, eficiência hídrica, mas também a circularidade dos materiais por um lado. Por outro, para arquitetos recém-formados e que iniciam a sua atividade profissional temos os níveis da arquitetura bioclimática, e da Passive House que também integra já o plano.
Esperemos que este ano arranque com força e que, portanto, tenhamos procura nestas matérias e também da eficiência energética. Ou seja, estão como áreas de formação de nível 1 mas distintas, separadas por temas e, no fundo, é a procura que faz com que esta formação cresça. Ela pode ser integrada no plano único, mas se não há procura efetivamente a formação não arranca, mas o que nós temos vindo a verificar é cada vez mais esta nova geração de arquitetos, estagiários e profissionais, começam a vir aqui beber precisamente pela falha na fase académica, e vêm se socorrer à Ordem dos Arquitetos para fazer formação profissional nestas áreas. Isso é uma constante.
MG – A ideia é que este plano, na prática, entre em ação este ano?
MR – Sim, e que fique mais musculado. Queremos contar com todos os intervenientes nesta área e fica aqui já lançado que a Passive House deve manifestar a sua vontade se quer que esta formação passe a ser integrada no plano único*, porque eu tenho este objetivo de musculá-las mais no plano único de formação e a nova geração quer saber mais e quer saber onde pode encontrar mais formação nestas áreas.
MG – Para finalizarmos pergunto à Marlene arquiteta e cidadã, o que é que tu gostarias que fosse o panorama do edificado em Portugal daqui a 15, 20 anos?
MR – A inteligência artificial, a robótica, vão ser cada vez mais intrínsecas à forma de projetar em Portugal, e os arquitetos têm que inevitavelmente adaptar-se e ajustar-se a esta realidade. Portanto, o que é que vai acontecer naturalmente? Vamos evoluir, não tanto, se calhar, à velocidade que nós gostaríamos, à velocidade do resto dos países do centro e do Norte da Europa, mas acredito que vamos ter casas mais confortáveis, ou porque os clientes assim o pedem, ou porque o custo da energia continua elevado e começa a ser taxado por excesso de utilização, e acredito que sejam estes os cenários que aí venham. As alterações climáticas e as diretrizes para 2050 começam a ser muito exigentes. Temos que ter muita poupança dos recursos naturais.
Nós já vemos isto em Portugal, vemos isto na Península Ibérica, em geral, que é taxar o excesso de consumo de água e proibição de consumo de água. Naturalmente, eu acho que vai acontecer o mesmo com os restantes recursos de fonte fóssil e pode ser uma medida castradora, mas necessária para que se comece a pensar na poupança e na forma de podermos construir edifícios passivos usando o sol, o vento, a força das águas, porque será o suficiente. Mas acredito que vai acontecer naturalmente ou por imposição europeia, que num cenário a 15 anos todos nós tenhamos edifícios passivos. Acredito!
Nota de atualização: a formação Passive House já foi aprovada e irá integrar o plano de formação contínua do segundo semestre de 2024 da Ordem dos Arquitetos.